Curgetes e uma fotografia mal tirada

Tenho para mim que alguém me deixa curgetes na horta. Explico. De um dia para o outro, aparecem por lá estes mísseis, curgetes para lá do quilo, quando no dia anterior nada o faria suspeitar. Ou então saltam da terra como coelhos e agarram-se ao troço da planta. Não sei. Lá misterioso é. Este ano não fui em cantigas e plantei apenas duas curgetes, porque a minha experiência - curta mas boa - diz-me que não adianta plantar muito mais do que isto para alimentar o rancho de Enxofães e o Grupo Desportivo de Fiães. É vê-las. E quando vem chuva, se olharmos atentamente, vemos a coisa a inchar, inchar, inchar. E quando mais regarmos mais curgetes tempos. Dá vontade de as olhar bem nos olhos e dizer: "Raparigas, isto assim não pode ser, tenham lá calma, o meu frigorífico não é assim tão grande e a minha sogra ainda me bate se levo mais curgetes. Ouviram? Isto é muito sério escusam de rir como se fossem curgetes." Não o faço claro, ninguém no seu perfeito juízo fala com curgetes. E se elas tivessem juízo também não cresceriam assim. Doidas. Tomem lá uma fotografia mal tirada porque o meu talento não dá para mais. Como bónus, ainda levam uma flor perdida, nem sei o que faz ali. É um dente-de-leão, não é? Acho que não morde. Acho. Não se pode confiar em plantas. Muito menos em curgetes. Parem quieta, pá!


Pausa com paisagem

Assim. Marmeleira, Coimbra.


Meloas à chuva

No ano passado tentei plantar meloas. Os caracóis ficaram tão entusiasmados com a ideia que as comeram todas. Ficou o lugar delas. Portanto, o resultado do meu árduo esforço foi um zero absoluto. Como sou rapaz persistente e que não desiste à primeira caracolada, plantei-as de novo este ano. Comeram uma delas. Menos mau. Plantei outra de seguida e ameacei-os fortemente. Coitada, lá cresceu e vai florindo aqui e acolá. Não sei como é o comportamento destas meninas, não o consigo comparar com nada. Mas é com algum espanto que olho para elas e digo: "Caramba, só isto?!" Quero eu dizer, esperava que as meloas fossem tontas no crescimento como são as abóboras, que começam a lavrar terra e só acabam em cima do telhado do vizinho. Nada disso. O crescimento das meloas é coisa tímida. Parece nada passar-se. Eu até lhes deixei espaço e tudo para crescerem à vontadinha. No que diz respeito a meloas, eu pecador me confesso, tinha as expectativas demasiado elevadas. Vai-se a ver e é mesmo assim. Nas primeiras semanas de terra, cheguei a ter pena delas. Pensava comigo: "Deu-lhes o abafo ou é mal de terra." Enfim, esperando e andando. Às tantas, num destes dias dá-lhes a fúria de crescer e galgam a horta toda, trepam tomateiros e só acabam no céu. Vão ver. Esta fotografia que aqui está foi tirada no passado sábado. Choveu como se o céu acabasse e caísse na terra. A meloa olhava-me muito friorenta, coitada, ela que é franzina, e chorava com o frio. Tentei acalmá-la, explicando que sabia mal mas fazia bem, que era assim uma espécie de xarope para crianças doentes. Não creio que ela tivesse compreendido a comparação - bem fraquinha, por sinal. Como veio o sol logo depois, estendeu as folhas e respirou de alívio. Pergunto: serão todas as meloas assim ou apenas as minhas?

meloa

Arte na horta



Também se fazem projectos artísticos com hortas. Pausa para espanto. Deixemos cair o queixo e olhemos para o infinito como se estivéssemos tontos. Dois minutos passam. Icemos o queixo como o barco iça a âncora. Devolvamos o olhar à natural passagem do tempo. Sim, arte com hortas. Projectos artísticos com hortas. Chama-se "Uma horta em cada esquina", os artistas são a Vera Mantero, o Rui Santos e a Elisabete Francisca. O projecto iniciou a 23 de Dezembro de 2013 e promove uma agricultura sustentável e em harmonia com o ritmo urbano. Sim, é claramente um espaço de confluência entre a horta e a cidade. Caramba. Soubera eu que a arte poderia servir de espaço de encontro entre horta e cidade e já há muito me teria dedicado à pintura de couves ou ao bordado de rama de meloa. Segundo diz a notícia do Público, o projecto envolveu a criação de quatro hortas. Quatro hortas e meia, vá. Quatro terrenos foram trabalhados ou sofreram algum tipo de intervenção (na arte, e na arquitectura, diz-se assim, que é muito chique: "sofrer intervenção"; parece coisa típica de câmara de tortura ou assim); o outro terreno será um espaço de intervenção artística efémera. Pausa para respirar. (Intervenção artística hortícola? Valha-me santa couve galega!) Esta "horta súbita" será ocupada durante duas horas por plantas. Pausa para olhar o infinito. A iniciativa prevê a realização de workshops para crianças, visitas guiadas aos espaços hortícolas, concerto, uma marcha do orgulho hortícola (!?), oficinas de desenho e instalações de cinema. Tudo isto se passa em Lisboa. Ufa. Está longe. O objectivo último é levar as pessoas a cultivar o seu próprio espacinho. E isto não pode ser coisa má, pois não? Está tudo aqui. Passem por lá.

Flores de amora-silvestre

São minhas vizinhas. Quando chegarmos ao pino do calor a gente canta-lhes o fado. Amoras. Quem não gosta delas?




Para acabar de vez com os mitos; ou: quando Roland Barthes visitou a minha horta

Matemos o primeiro mito. Que eu saiba, Roland Barthes não visitou a minha horta ou sequer saberá que existe. Ademais, Roland Barthes faleceu em 1980 e nesse ano  ainda não existia horta e tão pouco fora planeada - logo, mesmo que Roland Barthes tivesse o dom inesperado de visitar espaços planeados e não concretizados nunca a teria visitado. E pergunto: o que traria Roland Barthes à minha horta? Talvez apreciasse uns pimentinhos ou uma saladinha de tomate enquanto escrevia ou pensava sobre o que aproxima e o que afasta o significado e o significante; talvez suspirasse por ares campesinos e encontrasse prazer olhando o crescimento da curgetes num dos intervalos arrufados com o complicado Ferdinand de Saussure - outro que não visitou nem visitará a minha horta. Mesmo não acreditando que Roland Barthes afatasse o olhar da vendedora da loja de roupa, Françoise, Fefe para os amigos, Fe para o amante argelino, enquanto beberica um café numa esplanada da Rue de l'Ancien Quai, Cherbourg, França, para ouvir falar na poda dos tomates, ou nas estacas dos pepineiros, ou nas malditas pragas da horta, podemos ficcionar a chegada de Barthes à horta. Chega num imenso carro preto conduzido por um albino de nome Cortez, um espanhol fugido ao franquismo, vestindo preto como um morcego mal acordado. Abre a porta do carro, inclina a cabeça para fora, de seguida o tronco, assenta um pé gordo no chão e depois o outro. Olha para o céu gigante de Gaia e sussurra como falando para dentro: "Vamos a isto!" Abro-lhe o portão de ferro, convido-o a entrar e abro caminho. Peço imensa desculpa pelos fios do estendal da roupa, explico que não tive tempo de os retirar e que fiquei muito surpreendido com a chegada do grande mitologista à pobre e magrinha horta. Cortez segue Barthes com o olhar e com os gestos. Junto do enorme bidão azul da água anuncio: "Esta é a minha horta." "Cortez, passa-me o caderno e o lápis, e arranja-me uma cadeirinha de madeira, esta gota mata-me." Cortez afasta-se, ouço-o abrir a bagageira do carro. Volta. Traz uma cadeira dobrada. Monta-a e ajuda Roland Barthes a sentar-se. Barthes limita-se a olhar profundamente cada planta, cada grão de terra, cada decline, cada daninha; não diz palavra audível. Atrevo-me a oferecer um copinho de água, Barthes ignora-me e começa a escrever. E escreve imenso. Escreve com velocidade. De vez em quando olha para a horta, afina o olhar e rabisca pequenos desenhos; no meio do texto, nos cantos das folhas. Num desses desenhos reconheço uma curgete. Mais nada. Cortez afasta-se e urina a um canto. E Barthes escreve. Pergunto se está tudo bem, se precisa de alguma coisa, mas Barthes limita-se a escrever e a rabiscar. O sol vai alto, mas uma neblina fina e fria entra pelos pulmões dentro e arrefece o corpo. 20 minutos depois, Barthes fecha o livro, olha pela última vez a terra mansa e levanta-se. Cortez aproxima-se e dobra a cadeira, enfiando-a debaixo do braço esquerdo. Barthes inclina o corpo para trás como que recuperando o movimentos dos rins e vira costas à horta. Baixa-se para passar debaixo dos fios do estendal da roupa. Atravessa o portão de ferro. Cortez abre-lhe a porta do carro. Debruça-se para entrar. Acompanho-o, espero uma decisão, uma análise, uma palavra, um resultado do estudo. Barthes fecha a porta do carro sem nada dizer. Cortez encaminha-se para o lugar do condutor, acena com a cabeça, uma cicatriz escura ilumina-se com o sol. Baixa-se e desaparece nas entranhas do carro. Liga o motor. Inesperadamente, Barthes baixa o seu vidro. Olha-me duramente nos olhos, parece olhar-me para a alma, bem lá para o fundo onde guardamos os nossos segredos mais íntimos e os medos inconfessados, e declara: "A sua horta não é um mito, a sua horta é o que é". Fecha o vidro, o carro arranca, movimenta-se vagaroso como uma baleia no oceano e desaparece no final da rua.
Roland Barthes, mesmo ficcionado, tem razão: a minha horta é um desimportância, não é um mito nem deixa de o ser, é o que é. E sendo o que é não merece discussão. Ao longo das descrições que por aqui faço poderá parecer projecto imenso, poderá parecer coisa alguma. Não sei o que vai na cabeça do leitor desta horta (ou nos 2 ou 3 leitores). Resta-me, portanto, ser o mais claro que a lucidez me permite. A minha horta é um rectângulo, um tonto rectângulo, plantado por 4 tomateiros coração de boi, 2 curgetes, 2 meloas, um pepineiro, 4 tomateiros chucha, 4 pés de pimento padrão, 4 tomateiros de rama, 4 pés de pimento verde. E é tudo.  A mitologia não tem nada a ver com isto. Não há deuses na minha horta. Ou há?


3 curgetes e 1 enxada

Se isto for como no ano passado é melhor começar a pensar em vender curgetes. Na imagem, as 3 primeiras deste ano. A enxada, essa, é a de sempre. Não está à venda. E nem vale assim tanto. Alguém interessado? Nas curgetes, não é na enxada; essa não vale nada.


Descrição sucinta, ou coisa assim, da colheita dos alhos

Fui-me aos alhos e disse-lhes meus meninos isto agora é para levantar da terra de modos que se bem o disse melhor o fiz puxei-os pelos cabelos e levantei-os do chão alguns reclamaram que os deixasse ficar que o sol de verão aquecia que queriam passear à praia e os mais malandros confessaram terem visto umas cabeças de cebola muito interessantes não cedi não se deve ceder a alhos assim à embocadura de serem colhidos feitos teimosos agarrei-os soltei-os da terra alguns contorceram-se e queriam meter-se para dentro há sempre uns mais afoitos e rápidos a fugir às obrigações e fui obrigado a zangar-me eu que sou pessoa pacífica mesmo com alhos e nem consegui conter-me enervei-me a sério os filhos da mãe dos alhos então uma pessoa tenta ser gentil talvez a palavra certa nem seja gentil cortês talvez simpático talvez uma destas palavras e aqueles malucos querem ali ficar de papo para o ar não não meninos choveu ontem e choveu no dia antes de ontem e choveu no dia antes de antes de ontem e choveu muito tanto que a terra parece lama e eu não perderei o meu trabalho por meia dúzia de gotas de chuva mal calculadas no mês ou na estação vamos lá levantar que é hora depois de muita luta consegui foi alívio alhos assim complicam muito a colheita agora secam à janela ai queriam praia tomem lá sol do bom mesmo sujos sorriem nunca viram janela tão bonita comentam entre eles e eu finjo que não ouço não se pode dar ouvidos a alhos não é gente de confiança são malucos na horta há gente assim as alfaces são outras tontas por exemplo mas isto hoje é sobre alhos colhi 27 alhos correu bem tinha plantado 30 só se perderam 3 gostava de saber como mas é melhor preocupar-me com outras coisas e foi isto que se passou pronto fica também a foto que é para não dizerem que invento coisas para tontices bastam os alhos daqui a uns dias e quando secarem muito bem o que demorará uns 10 dias de sol limpo-os bem limpinhos e monto um lindo ramalhete e era o que queria escrever sobre a colheita de alhos talvez só mais uma coisa a minha mãe diz que deverão ser colhidos pelo São João resolvi colher antes porque me pareceu muito ajuizado antes que se estragassem a terra estava muito molhada pronto era isto.



O mirtilo solitário

Mal cresce. Calculo que tenha pouca exposição de sol. Pode ser mal de vergonha, não sei como são os mirtilos nas emoções. Todavia, nem por isso deixa de nos mostrar bagas. São mais as bagas do que o resto do mirtilo todo. Tímido mas trabalhador. Está encostado a uma estaca velha que lhe ofereci. Noutro dia, ainda vi um gato afiar lá as unhas. O mirtilo nem se mexeu, apavorado. É um mirtilo sozinho. Se soubesse, tinha-lhe dado companhia da espécie. Custa-me ver plantas assim, a entristecer como animais à beira da extinção. Ou então levo-o a Sever do Vouga, diz que é lá a terra dos mirtilos. Preparo um farnel - rissóis, pastéis de bacalhau e um arrozinho malandro, e uma garrafinha de água, talvez mesmo uma coca-cola ou um sumol - e vamos contentes pela Nacional 1. É um tirinho. Muito rápido chegamos a Sever do Vouga. Há de ter parque de merendas algures. Estendo a toalha, fazemos o piquenique, vemos as vistas e visitamos a família do infeliz, nos campos ou nas estufas, não sei bem. Ao entardecer, e depois de o mirtilo meter conversa e alegrar-se, vimos embora e deixo-o na horta, encostado à estaca. Ele há gostar. Pode ser que assim sorria, sei lá.


A vida frágil de um piripireiro

No início eram dois. Dois piripireiros. Um deles morreu do frio, o outro sobreviveu a custo e parece ligado às máquinas dos cuidados intensivos do piripireiros. Encontrei-o alagado de daninhas que lhe comiam os pés. Desafoguei-o e fiz por lhe dar esperança. Podei o rapaz, lavei-lhe a cara. Devolvi-lhe alguma dignidade. Não creio que venha a dar flores ou frutos nos próximos tempos, parece muito doente. Se o clima for de amizades com ele, voltará ao espanto que foi o ano passado. Deu tanto piripiri, mas tanto, que passado um ano ainda nem sei que lhes faça. Agora está assim, como se vê nesta imagem. Não lhe vou exigir nada. Que fique onde está, a olhar muito atento para as flores das courgettes, pode ser que guarde a meloas do caracóis e os tomateiros dos pulgões. Mas não o vejo levantar-se para mexer uma palha, está mesmo débil, o piripireiro. Coitado.


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