Olhai os lírios da horta. E as outras flores também.

Nestas alturas, e nas outras todas também, gostava de ter uma máquina fotográfica em condições, daquelas que fotografam de tal modo que olhamos para o resultado e nos enternecemos com a delicadeza e a perfeição da tecnologia. Não é o caso. A minha máquina fotográfica é a do telemóvel. Em primeiro lugar porque o cultivo de tomates e pimentos não me pagou nada melhor. Em segundo lugar porque o telemóvel é muito prático e está sempre à mão. Onde se viu cavar terra e a seguir pegar em objetos que valem milhares de euros? Não na minha horta. Ainda assim quero deixar aqui o testemunho da explosão de flores que vai para aquelas bandas, mesmo que a mostra se aperte em imagens de péssima qualidade. Não lhes sei o nome, o das flores. São as flores que a avó da S leva ao cemitério, e não lhes sei o nome. Sei que uma delas se chama lírio, e isso é já uma abundância de sabedoria. É uma roxa que aparece logo em baixo, a seguir ao texto. Penso também que uma outra se chamará craveta. Uma delas. O resto é um mar imenso de ignorância.






Uma ou duas coisas sobre cenouras

Semear cenouras não é ofício que atrapalhe ninguém, seja o mais engenhoso dos especialistas ou o mais destalentoso no que a trabalhos agrícolas diz respeito. Não é novidade, portanto, anunciar ao mundo que os preparos para a sementeira das cenouras começam no alisar um pouco a terra, suavizando o que de mais duro poderá comportar as entranhas do solo, e no enriquecer a cama com algum composto fertilizante. Convém cuidar que o terreno seja relativamente leve, solarengo e rico. A cenoura agradece. Se a semente for lançado à terra nos dias embrasados, cubra-se o solo de qualquer coisa para proteger do calor e mesmo de uma ou outra ventania menos mansa. Enfim, é espalhar a semente em canteiros assim cuidados e deixar que a mãe Natureza reconheça a semente e a faça crescer. Logo a seguir a isto vêm os sarilhos. Pois que nascem outras plantas não autorizadas no canteiro, as doidas. Não sabiam ir nascer noutro local que não ali. Parvas. Pois que não sei distinguir a planta da cenoura de outras plantas, as invasoras. Pois que aquilo vai crescendo por ali acima e continuamos sem saber o que é cenoura e o que é não-cenoura. Pois que passa algum tempo e nós sempre a tentar identificar quais delas se comportam como cenouras e não percebemos de todo. Neste aspeto, os supermercados prestam um serviço de péssima qualidade: não deixam que os clientes, os compradores de cenouras, saibam com que folhas se mostra ao mundo a raiz enterrada. E alguém diz: "Ouve lá, basta ver o que mais cresce no canteiro; esse é um falso problema". E tem toda a razão. É uma falsa questão. A certa altura distingue-se a cenoura da não-cenoura. Acontece que nos acomete uma nostalgia, um aperto saudoso quando pensamos em arrancar as sementes queridas pelas nossas mãos espalhadas em favor da sobrevalorizada monda. Maldita monda, o nome abre-se cavernosamente na boca e ecoa para dentro numa repetição funérea. M-O-N-D-A. Uma espécie de anti-mundo. Não gosto de mondas. Mondar implica o extermínio mais ou menos aleatório de inumeráveis plantinhas inocentes. O extermínio das minhas cenourinhas. Não. De modos que deixei andar, apiedado dos gritos desesperados de cenourinhas pequeninas, boquinha gritando a plenos pulmões e bracinhos apontados ao colo do horticultor - eu. Por compaixão tamanha, tonta compaixão tamanha, as cenouras vieram a alongar-se ao céu, agradecendo-lhe a chuva e o sol. Cresceram para o esplendor de plantas brasonadas, julgaram-se até maiores em importância do que qualquer outra planta da horta. Cresceram, enfim, pedantes. Sim, as cenouras da minha horta cresceram pedantes. Enfim, deixemo-nos de floridos e entremos diretamente no que interessa, que isto de agricultura pouco tem de prosa: não quis arrancar as plantas que estavam a mais e aquilo tornou-se numa floresta amazónica (cenourónica, para ser mais exato).

A minha floresta de cenouras
Agora mais para o fim percebi o erro cometido: muita parra e pouca uva; ou, neste caso: muitas folhas para tão pouco de cenoura. Além deste erro, deixei que as plantas espigassem; e como espigaram a raiz começou a ganhar a consistência da madeira. Disparate atrás de disparate. Por estes dias, vou fazendo tudo ao mesmo tempo. Colho as cenouras que são de colher, mondo as cenouras que são de mondar e arranco as cenouras espigadas. Apesar destes desassisados todos consegui colher algumas, a maior parte delas pequeninas como dedos pequeninos. Saborosas. Como todas as cenouras deviam ser.

A primeira colheita de cenouras - apesar de tudo

Ensaio sobre a inveja da horta

Devia ser estudado este leve torpor, esta breve comoção e este aperto miudinho de quem olha para a horta dos outros e pensa: "Também queria uma assim". É sério. Inveja da horta. Eu sofro desse mal. Não consigo atinar com a linha da cavadela e com o aprumo do camalhão e com a retidão das linhas terrosas e com nada. Tudo sai mais ou menos torto, mais ou menos tonto, mais ou menos trapalhão. Não há cavadela que as mãos soltem e possamos dizer: "Sim senhores, que bem cavado está este terreno!" Nada. Quem olha para o pobre esboço de horta deste ano bem poderá zangar-se com o atropelo da terra. Parece um cão ter-se espojado e escavado; melhor, parece uma, ou mais, matilhas  de cães ter-se espojado e escavado a terra, deixando este aspeto apenas encontrável num canto esquecido de Marte ou numa das crateras irregulares da Lua. Juro-vos. Não é uma horta, é um destroço. Uma loiça de refugo, uma peça de roupa desautorizada pelo controlo de qualidade, um bolo de chocolate invendível nas linhas finas de um supermercado, uma tonteria. Nasce-me a terra torta de mãos, que posso eu fazer? Invejar a horta dos outros, eis o que posso fazer. Às vezes apetece-me ir lá e rebolar-me naquelas terras de horta perfeita, desfazendo sulco a sulco aqueles altares de perfeição hortícola! Ah, fora eu cão e comandasse uma matilha! Não estragaria as plantas, nada disso, apenas a retidão das linhas, a perfeição inadmissível de uma horta esculpida como estátua da Renascença. Voltaria depois, de coração aliviado, e olharia a minha pobre horta com olhos bem mais perdulários, um outro carinho, uma raiva mais pequenina, e celebraria com ela o final da zanga. 
E agora atrevo-me a publicar um pequeno nada da horta, a imperfeição do canteiro das beringelas. De tão patusco parece bonito. Talvez seja, não sei bem.



Apenas uma pergunta inocente

O que farei com tantas favas? Tantas, tantas! É só o que queria escrever perguntando. Deixo a resposta aqui a elaborar num canto mais sossegado da consciência. Depois vou visitá-la para ver se cresceu e está madura para colher. A resposta. As favas, essas, incharam no sol destes dias. Sacos e mais sacos. O que farei com tantas favas? E fico a pensar nelas. Ou um canto pequeno fica a pensar. O canto de pensar as favas. Afinal, todos temos favas na consciência. Ou é de mim?


Couves e nabos e nabiças floridas

Como já disse "em antes", como elegantemente se fala por estas bandas, o inverno fez estragos consideráveis na minha horta - previsíveis, na verdade -, e não tem permitido grandes avanços nos tratos obrigatórios. Portanto, tudo o que vai nascendo nasce por sua livre e espontânea vontade, não havendo mão humana que faça qualquer tipo de controlo. Mesmo as plantas que era suposto de algum modo obedecerem ao dono, como couves ou nabos, teimam em seguir o curso da natureza, e em vez de darem couves e folhas e nabos propriamente ditos estoiram em flor. Quer dizer, bem podiam ter esperado assim uns diazitos para que pudesse por mão aos grelos. Nada disso. Estoiram em flor sem autorização. As minhas pencas e as minhas nabiças e os meus nabos floriram. Mas floriram à parva e sem ordem. Brancos e amarelos atraem abelhas nos dias de sol (apontamento mental: qualquer dia hei de - é assim que se escreve segundo o acordo ortográfico - ter uma colmeia) e nos dias de chuva limitam-se a escorrer cor ou a servir de pequenino alvo para que as gotas acertem na corola. Sempre pensei que estes tontos esperassem pela Primavera, ou então é a Primavera que se adianta nas couves e nos nabos nas nabiças. De nada me servem as flores. Olho-as, apenas. Isso já é muito.

Flores de nabiça

Flores de couve penca

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